4 de mar. de 2011

Unesp estuda Parkinson em iniciativa internacional de ponta

Christian Hook, pesquisador da Universidade de Ciências Aplicadas de Regensburg, na Alemanha e responsável pelo desenvolvimento da caneta biométrica inteligente BiSP
Na reportagem da TV, golfinhos entrecortam a superfície do mar de alguma baía brasileira. Os movimentos são suaves e contínuos, os animais exercem sua liberdade com fluidez e independência. Até que a voz no alto-falante chama a atenção convocando um dos pacientes da sala de espera do Bloco 3 para a consulta. Do lado de cá da tela está em andamento o Ambulatório de Neurologia das Doenças do Movimento da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp (FMB), compondo um contraste curioso.

Aloísio tem Parkinson. Com braços e mãos tremendo, levanta-se por apoios, assume uma postura inclinada e, a passos lentos amparados pela esposa, segue pelo longo corredor até a sala 16. Antes de passar pela consulta médica padrão, ele é convidado a realizar um exame diferente. Recebe as instruções para utilizar uma caneta conectada a um laptop e sobrescrever desenhos de círculos, espirais e caracóis, assim que soar um apito eletrônico. O punho parece pouco firme e o tremor do outro braço apoiado é incessante. Terminado o registro, Aloísio segue para o atendimento médico. 

Através desta rotina, a Faculdade de Medicina de Botucatu participa de uma iniciativa internacional inédita para melhor compreender e tratar a doença de Parkinson. Por meio de um sensor inusitado- a caneta inteligente BiSP - a pesquisa se propõe a esquadrinhar as minúcias de movimentos manuais voluntários de pacientes com a doença. Os pesquisadores pretendem, então, acompanhar a evolução da execução dos movimentos e as respostas aos tratamentos usados, assim como comparar esses dados com os de pessoas saudáveis.

Os pacientes de Parkinson, estimados em 10 milhões no mundo e 300 mil no país, perdem dramática e progressivamente o controle dos movimentos finos, o que dificulta a rotina dessas pessoas, deixando-as muitas vezes inconformadas e deprimidas. O cenário ganha complexidade diante do aumento da expectativa de vida e do fato de ser uma doença associada ao envelhecimento, aumentando progressivamente sua incidência depois dos 65 anos.

Há décadas, diagnóstico, definição do tratamento e acompanhamento da doença são feitos através da caracterização visual pelo médico dos sinais motores: tremor, rigidez, lentidão dos movimentos e instabilidade da postura. Entretanto, são tomadas decisões baseadas em parâmetros médicos e “por mais treinamento que tenha o profissional, essa avaliação é subjetiva e sujeita a erro”, considera Dr. Arthur Schelp, do Departamento de Neurologia da FMB e um dos autores do projeto.

Por meio da cooperação entre a Unesp de Botucatu e a Universidade de Ciências Aplicadas de Regensburg, na Alemanha, os pesquisadores elaboraram um projeto para testar a capacidade de um equipamento medir objetivamente e registrar as alterações motoras da doença. Além de Schelp, a pesquisa foi planejada pela Dra. Silke Weber, da Otorrinolaringologia, pelo Dr. Luis Antonio Resende, da Neurologia, ambos da FMB, e pelo físico Christian Hook, pesquisador da universidade alemã e responsável pelo desenvolvimento da caneta biométrica inteligente BiSP (sigla para Biometric Smart Pen).

O estudo em andamento na Faculdade de Medicina de Botucatu desde outubro de 2010 é o primeiro do mundo a propor uma analise longitudinal com o aparelho, ou seja, a avaliação periódica da motricidade de pacientes de Parkinson. Devido à existência de um ambulatório específico para a doença no Hospital Universitário de FMB/Unesp, os pesquisadores podem contar com o retorno periódico dos pacientes (o que é mais complicado na Alemanha) para acompanhar e medir seu desenvolvimento com respeito ao comportamento motor fino.

A cada três meses, durante um ano, 50 pacientes já em acompanhamento e outros 20 novos casos de diagnóstico da doença realizarão as tarefas motoras padronizadas. Os sensores da caneta detectam os detalhes de como a pessoa realiza o desenho, e a análise computacional desses dados define algo parecido a uma “impressão digital” única da ação gráfica realizada.

Dessa forma, comparando parâmetros como a continuidade, correções do traçado, suavidade e tempo de execução das tarefas, a caneta pode fornecer “mais informações para se perceber a evolução da doença e a resposta ao tratamento”, como salienta Dr. Schelp. Ele lembra também que há casos em que o paciente informa certo tremor que não é confirmado ou não está aparente na inspeção médica, e outros casos em que modificações das características do tremor não são percebidas na avaliação.  Uma análise quantitativa e qualitativa mais exata pode, dessa forma, contribuir ao diagnóstico precoce e à prática clínica em Parkinson.

Professor Hook lembra que não há cura para a doença. Embora se saiba que resulte da disfunção ou morte de neurônios produtores do neurotransmissor dopamina no cérebro (o que leva à perda do controle e da fluidez dos movimentos), suas causas últimas não são conhecidas.

Resta aos médicos e pacientes o controle dos sintomas, o que é feito, normalmente, através de medicamentos. E como as drogas são para o resto da vida, definir detalhadamente a dosagem mínima (quantidade e frequência) suficiente desde o começo pode prolongar o tratamento e a qualidade de vida dos pacientes. Os pesquisadores acreditam que a caneta BiSP pode ajudar a definir a dose controladora ótima desde o inicio, comparar a eficácia de diferentes medicamentos, assim como identificar e registrar as flutuações dos sintomas. “Isso seria fantástico para o paciente”, considera Hook.

O médico inglês James Parkinson, em 1817, definiu como “paralisia agitante” a doença que leva seu nome.  Em dezembro de 2010, as pernas de Bernardo tremem e os pés se retorcem enquanto participa da pesquisa. O punho desenha 12 círculos sobre o mesmo lugar na folha de testes, e depois mais 12 círculos no ar, com o cotovelo apoiado e o braço erguido. Em seguida vêm quatro caracóis e mais quatro espirais, cujas linhas são acompanhadas de dentro para fora.

Por último, ele estica os braços e gira eles com as palmas para cima e para baixo repetidamente, enquanto segura a caneta BiSP numa mão e uma comum na outra. A tarefa toma todo o seu corpo. Terminado o teste, Bernardo recorda do dia em que ficou “travado” no ponto de ônibus e não conseguiu voltar para casa. Tinha calculado mal o período que ficaria sem os remédios.

Os danos pessoais e sociais da doença de Parkinson são extensos. Os tremores provocam constrangimento na fase inicial da doença. De modo geral, as mulheres se queixam de não conseguir mais desempenhar adequadamente suas funções no âmbito familiar, e os homens se queixam de perder a independência. Há perda da qualidade de vida com o comprometimento motor e da fala. Os gastos públicos com remédios e aposentadorias são altos. Talvez se justifique, assim, a necessidade do monitoramento detalhista da doença e o controle da eficácia prolongada da medicação.  

Dra. Silke considera se tratar de uma linha de pesquisa de ponta, de longo prazo e com caráter inovador, integrando áreas na fronteira multidisciplinar entre medicina, física, matemática e computação. Ela vislumbra o acompanhamento remoto da doença através do envio dos dados e comparação objetiva com exames prévios. Por ser móvel, de fácil aplicação e inofensivo a quem é examinado, o equipamento pode, futuramente, evitar o deslocamento dos pacientes.

Para a médica, a pesquisa se alinha a uma visão que a medicina global vem assumindo de não apenas amenizar os sintomas, “mas fazer um diagnóstico cada vez mais precoce para poder intervir mais cedo com resultado melhor”.

A partir desse projeto inicial, os pesquisadores esperam multiplicar as investigações nessa direção e intensificar a integração Botucatu-Regensburg.

Como funciona a caneta BiSP
De acordo com o professor Christian Hook, que é um entusiasta do intercâmbio com o Brasil e os brasileiros e que esteve em Botucatu no começo de dezembro para o workshop “Sensores em Medicina e Sistemas de Saúde Pessoais”, o projeto da caneta BiSP desenvolve-se dentro da biometria. Ou seja, para medir características de uma pessoa de modo a identificá-la de forma única, assim como os leitores de íris e das digitais. No caso, a ideia era captar as singularidades da assinatura de alguém, já que todos escrevem diferentemente, e usar o sistema para segurança de dados e acesso.

Para tanto, a caneta dispõe de seis sensores, capazes de receber estímulos sobre a maneira que a pessoa escreve (ou desenha) e converte-los em sinal elétrico. Em cada momento, são captados: força na direção da caneta, força no plano do papel, som propagado pelo tubo, a pressão da “pegada”, e os dois ângulos que a caneta faz com o plano. A partir da dinâmica desses sinais, programas de computação extraem certos números especiais, compondo uma “impressão digital matemática” singular para a execução de uma assinatura ou certo desenho.

Daí, através de programas de inteligência artificial, o sistema, então, “aprende” a classificar um sinal de entrada, ou seja, compara este com sua base de dados armazenados e reconhece quais as semelhanças e diferenças.  Hook e seus colegas alemães notaram que o sistema funcionava bem para a biometria de assinaturas porque era muito sensível para os detalhes da escrita. Diante disso, se descobriu a possibilidade do equipamento ser aplicado para condições em que seria interessante medir certas disfunções motoras no ato de empunhar a caneta.

Para a pesquisa envolvendo Parkinson, os pacientes têm realizado as mesmas tarefas gráficas, mas cada um a sua maneira. A partir do conjunto de dados dos pacientes e dos voluntários saudáveis, a idéia inicial é encontrar qual o conjunto de números essencial para classificar um desenho realizado como tipicamente de alguém com ou sem a doença. Seria possível assim, um “diagnóstico cibernético” do Parkinson.

Entretanto, o pesquisador está cético sobre esta possibilidade devido à grande diversidade de formas de desenhar. Ele confia mais em resultados a partir da repetição da mesma tarefa pelo mesmo paciente. A variação tende a ser menor e a comparação dos sinais sucessivos pode revelar mais indícios da evolução do quadro da doença e o monitoramento do efeito de remédios.  Uma outra proposta de aplicação da caneta BiSP em medicina partiu da constatação de que pessoas que sofrem de apnéia tem dificuldade de se concentrar na tarefa
 de escrita. Dra. Silke está coordenando a elaboração de um projeto para, futuramente, ser capaz de medir o grau de atenção para essas pessoas executarem uma tarefa gráfica, o que pode ajudar a evitar acidentes nas estradas e no trabalho. 

Essas e outras ideias foram discutidas e aprofundadas no segundo workshop sobre a aplicação de sensores em medicina, que aconteceu dias 17 e 18 de fevereiro na Faculdade de Engenharia da Unesp de Bauru. (Assessoria FMB).

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